Entrevista a Ramonet: Propostas para um outro mundo possível

2005-08-09 00:00:00

João Alexandre Peschanski, de Porto Alegre (RS), para o
Brasil de Fato. Entrevista realizada em janeiro de 2005,
durante o V Fórum Social Mundial.

As pessoas e os movimentos sociais que se identificam com o
altermundialismo e vão a Fóruns Sociais Mundiais deveriam
elaborar uma Carta Social Mundial. No documento, deveriam
ser listados os pontos essenciais e comuns dos
participantes dos encontros contra a globalização, como a
anulação da dívida externa, a retirada de tropas militares
que ocupam países e a interrupção da privatização de
serviços públicos e recursos naturais. A avaliação é do
jornalista Ignacio Ramonet que, em entrevista exclusiva ao
Brasil de Fato, fez um balanço do 5° Fórum Social Mundial,
que se encerrou no dia 31 de janeiro, em Porto Alegre (RS).

Nessa última edição do evento, a Carta não foi produzida,
apesar de a criação de um documento que unifique os
objetivos dos participantes do Fórum ter sido apoiada por
integrantes de diversas entidades. Para Ramonet, a falta de
uma pauta de propostas para o encontro leva ao surgimento
de críticas em relação ao formato do evento. “Algumas
pessoas chegam a se perguntar se o Fórum não se transformou
em uma grande feira ou festival, que não incomodaria
ninguém. Como se fosse puro entretenimento”, afirmou.

O jornalista diz que os participantes do Fórum têm uma
grande responsabilidade, pois representam toda a humanidade,
e conquistaram, desde a primeira edição do evento, em 2001,
muita influência no cenário político internacional. Segundo
ele, o altermundialismo se transformou em uma hiperpotência,
fundamentada em uma visão social do mundo, que se confronta
com a hiperpotência militar estadunidense.

Brasil de Fato – Encerra-se o 5º Fórum Social Mundial, o
quarto em Porto Alegre. Qual é o balanço do evento,
considerando os que o precederam?

Ignacio Ramonet – É um pouco cedo para estabelecer qualquer
tipo de balanço, pois o Fórum acaba tendo repercussão a
longo prazo. É certo, entretanto, que se evolui no sentido
de criar articulações e campanhas orientadas para ações e
propostas mais diretas. Fazendo o balanço dos cinco Fóruns,
pode-se dizer que um novo ator surgiu no campo
internacional. Um ator tão importante que algumas pessoas o
chamam da segunda hiperpotência. Há os Estados Unidos, que
são uma hiperpotência militar, e a segunda seria então a
portadora de uma visão social, constituída pela humanidade
que se reúne no Fórum Social Mundial. No início, este ator
foi alvo de muita curiosidade – e ainda é. Há, por exemplo,
6 mil jornalistas inscritos para cobrir a quinta edição do
evento, dos quais 3 mil são ligados a meios da grande
imprensa.

BF – Quais foram os principais impactos do encontro desde
2001, quando de sua primeira edição?

Ramonet – Muitas idéias que nasceram em Porto Alegre
cresceram e tomaram importância no cenário político. No dia
26 de janeiro, o presidente francês, Jacques Chirac, fez
uma declaração no Fórum Econômico Mundial, em Davos, Suíça,
defendendo a criação de uma taxa internacional para
erradicar a fome, que é uma idéia do Fórum Social Mundial.
O presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, também
a defendeu na Organização das Nações Unidas (ONU). Parece
haver um acordo entre diversos governos de que a taxa
precisa realmente ser criada. Por conta disso, e outros
elementos, o balanço dos encontros é muito positivo. O que
se pode questionar é a continuidade desses Fóruns. Quando
surgiu, o evento estava envolto em grande entusiasmo,
representando muita esperança. Hoje, o entusiasmo continua?
A esperança continua? Há vários observadores do Fórum que
acreditam que este está menos inovador. Mais repetitivo.
Obviamente, há o fato de que o evento não faz mais uma
irrupção na paisagem política, e isto faz com que haja
menos surpresas, menos novidades. Algumas pessoas chegam a
se perguntar se o Fórum não se transformou em uma grande
feira ou festival, que não incomodaria ninguém. Como se
fosse puro entretenimento. Esta é uma leitura
excessivamente pessimista. O que se pode dizer é que, em um
contexto internacional mais grave, marcado não só pela
globalização como pela guerra, já que estamos em tempos de
guerra no momento, o Fórum parece algo pouco eficaz, como
se mantivesse uma prática de um período anterior à situação
de guerra, que massacrou pessoas no Afeganistão, Iraque e
pode agora atingir o Irã.

BF – A hiperpotência estadunidense está na ofensiva, já que
se trata de um período de guerras. Qual é a estratégia das
pessoas que resistem contra o império, e que se reúnem no
Fórum?

Ramonet – O altermundialismo, em toda a sua diversidade,
precisa continuar acreditando que o mundo como está não
pode durar. O mundo é tão injusto e tão ilegal, há tantas
pessoas na miséria, que não se pode duvidar, em momento
algum, que o mundo como está não tem que acabar. É também
preciso ter em mente que ele não vai mudar sozinho. Todos
têm que ajudar na mudança. Já há indícios que mostram que
as coisas estão mudando. O altermundialismo, a doutrina do
outro mundo possível, precisa ter uma lista de propostas
para o planeta.

BF – Integrantes de movimentos sociais, antes de participar
do Fórum, defendiam um evento mais propositivo. Isto
ocorreu? O que foi decidido?

Ramonet – A idéia era construir um conjunto de propostas de
ação que seria acatado por todos os participantes e
organizações do Fórum. Seria preciso fazer um manifesto,
com 5 ou 10 objetivos que se deve atingir, custe o que
custar. Independentemente das estratégias mais locais, é
preciso criar uma plataforma comum, como um evangelho do
Fórum Social Mundial, como uma carta sagrada do evento, à
qual o conjunto das organizações aderiria. Até o momento,
isto não existe. O termo altermundialismo não define
concretamente uma proposta, fica muito vago. Deve-se
agregar os movimentos com base em uma lista de objetivos
mais definidos.

BF – Quais seriam os objetivos comuns que estariam na Carta
Social Mundial?

Ramonet – Os movimentos sociais e as entidades certamente
estariam de acordo para colocar pontos como a anulação das
dívidas externas de todos os países, a criação de uma taxa
internacional sobre as grandes transações financeiras para
financiar políticas sociais, o fim da privatização dos
recursos naturais... É preciso lembrar que morrem, todos os
dias, 30 mil crianças por conta do consumo de água
contaminada. Haveria também união dos movimentos para criar
uma série de dispositivos para impedir guerras. Isto não se
daria só pelo princípio, mas por algo mais concreto:
impedir a construção de bases militares, principalmente dos
Estados Unidos, em países estrangeiros. É preciso
interromper as privatizações do setor público. A carta,
acho, não seria difícil de elaborar, pois há muitas lutas
comuns, tendo em vista que os grandes temas da globalização
mobilizam muita resistência.

BF – Os objetivos seriam então fáceis de estabelecer, mas
como construir um plano de ação mundial para os
participantes do Fórum?

Ramonet – O plano de ação consiste na realização de
operações e mobilizações em escala mundial, como as que
ocorreram na véspera da guerra do Iraque, em fevereiro de
2003, quando 20 milhões de pessoas saíram às ruas de
diversos países para protestar contra a ofensiva
estadunidense. Acho que, hoje, temos condições de lançar
planos de ação planetários sobre a questão da anulação das
dívidas, mobilizando e conscientizando pessoas. Isto
serviria para lembrar constantemente aos governos que
construir um mundo mais justo não é tão complicado.
Deixaria claro para eles que há meios claros, e que
conhecemos, para construir um mundo melhor. E quem aceitar
o mundo como está é preciso ser visto como cúmplice de
crimes contra a humanidade, crimes econômicos contra a
humanidade.

BF – No campo das mídias, a humanidade é vítima da tirania
da comunicação, de acordo com um termo que o senhor criou,
destacando a elaboração de mecanismos que impõem uma forma
de pensamento único. Nesta frente de batalha, como se deve
lutar?

Ramonet – Em relação a isso, acho que os movimentos já
fazem muito, pois estão mobilizados. Os grupos alternativos
de contrainformação fazem um trabalho muito bom. No Fórum
de 2005, há 3 mil comunicadores alternativos, ligados a
rádios comunitárias, redes alternativas, jornais de contra-
informação, de páginas na internet com conteúdo diferente.
Tudo está indicando que outro tipo de comunicação é
possível, que responda mais às necessidades da população do
que aos interesses das grandes empresas. Neste caso,
poderia pensar-se em um meio de coletar toda essa
informação que é produzida e disseminá-la de modo mais
efetivo. Quando cada um trabalha por si, somos muitos
fracos, é preciso que todos trabalhemos em conjunto. Não se
pode esquecer que o Fórum Social Mundial representa toda a
humanidade, seis bilhões de pessoas, enquanto o outro lado
representa algumas centenas de pessoas, evidentemente com
muitos recursos. Nós temos a massa da humanidade de nosso
lado e uma responsabilidade destas precisa ser levada a
sério.

Quem é Diretor do jornal francês Le Monde Diplomatique,
Ignacio Ramonet é da coordenação internacional do Fórum
Social Mundial. Formado em história na Escola de Altos
Estudos em Ciências Sociais, em Paris, França, ele é
especialista em geopolítica, assunto sobre o qual presta
consultoria à Organização das Nações Unidas (ONU). É autor
de dezenas de livros, alguns dos quais estão traduzidos
para o português, como Geopolítica do Caos (1998) e A
Tirania da Comunicação (1999), publicados pela Editora
Vozes.