O grito das Américas

2000-10-18 00:00:00

Participei em Nova Iorque, a 12 de outubro, data do "descobrimento" de nosso
Continente, do Grito dos Excluídos das Américas. A cidade norte-americana
foi escolhida por ser a sede da ONU; foco do noticiário internacional; e
palco da Marcha dos Migrantes Indocumentados, realizada dia 14, e da Marcha
Mundial das Mulheres, a 17.

Uma comissão de representantes das três regiões continentais, encabeçada pelo
argentino Adolfo Perez Esquivel, prêmio Nobel da Paz, foi recebida na ONU por
Gillian Martin Sorensen, assistente do Secretário Geral e chefe do
Departamento de Relações Internacionais. Do Brasil, presentes Gilmar Mauro,
dirigente do MST, e eu. Kofi Annan ausentou-se para viajar às pressas ao
Oriente Médio, devido ao conflito entre israelenses e árabes.

À entrada do edifício da ONU uma exposição de fotos de Sebastião Salgado
exibia o rosto de crianças pobres do mundo, o que facilitou o nosso diálogo
com Mrs. Sorensen, a quem descrevemos os efeitos nefastos das políticas do
FMI e do Banco Mundial em nossos países. Insistimos para que a ONU não se
torne um joguete nas mãos da política externa dos EUA.

O grande escândalo deste fim de século e milênio é a carência em que vivem
multidões. No mundo, segundo o Bird, 1,2 bilhão de pessoas sobrevivem com
renda mensal inferior a US$ 30, e outras 2,8 bilhões com menos de US$ 60. Na
América Latina, são 224 milhões de pobres e 90 milhões de miseráveis. No
Brasil, 32 milhões de miseráveis e 54,1 milhões de pobres.

Chegamos à Lua, mas não à justiça social. Possuímos telescópios capazes de
desvendar as intimidades do Universo, mas não enxergamos as necessidades e os
direitos do próximo carente. Clonamos seres vivos, mas não salvamos crianças
subnutridas da morte. Fotografamos quanticamente as partículas subatômicas,
mas ignoramos os anseios mais profundos do coração humano.

Um fenômeno novo destaca-se no panorama mundial, evidente nas recentes
manifestações em Nova Iorque, Praga, Washington e Seattle: os movimentos de
solidariedade aos condenados da Terra. O clamor de justiça já não brota
apenas da esquerda ideologizada e partidarizada. Ecoa de incontáveis
movimentos sociais que, articulados por ONGs e Igrejas, emprestam sua força e
sua voz aos que carecem de uma coisa e outra. Têm como ideologia a ética,
como partido a solidariedade, como sonho o direito de todos aos bens
essenciais à vida, como proposta a denúncia dos responsáveis pelas
desigualdades mundiais e a construção de uma civilização do amor.

O mundo já não se divide entre capitalismo e socialismo, mas sim entre o
egoísmo neoliberal, centrado na primazia do lucro, e a compaixão dos que
lutam por uma economia solidária. Um e outro coexistem nos mesmos países. O
avanço da tecnologia de comunicações favorece o entrelaçamento de redes
comprometidas com a conquista de um modelo alternativo de sociedade. O
perfil da era pós-capitalista desenha-se no esforço de dar um fim à exclusão
social, redistribuir a renda, proteger o meio ambiente, priorizar os bens
infinitos, como a ética e a espiritualidade, e não superestimar os bens
finitos.

Os novos militantes da solidariedade não querem apenas estruturas econômicas
mais justas, como o acesso ao mercado internacional dos produtos dos países
pobres. Querem mais: os bens do espírito. Ao contrário da velha esquerda,
são pessoas espiritualizadas e entusiasmadas (que etimologicamente significa
"repletos do Espírito de Deus"). Como um são Francisco hodierno, sentem-se
irmãos e irmãs de Gaia e da Africa, dos camponeses da América Latina e dos
indígenas da Lapônia, dos curdos e dos iraquianos. Sua lógica não se guia
pelo maniqueísmo da política exterior dos EUA, que bloqueia Cuba, anexa Porto
Rico a seu território, intervém na Colômbia e faz vista grossa quando tropas
de Israel ocupam territórios árabes. Guia-se pelo direito de todos ao bem
maior de Deus: a vida.

A queda do socialismo real no Leste europeu coincide com a emergência do
socialismo virtual na Internet. Ela quebra o monopólio das agências de
notícias que fazem eco à versão dos senhores da Terra. Como o engodo que, em
1992, os EUA tentaram nos impingir, de que os mísseis lançados contra o
Iraque só destruíram prédios. Hoje se sabe que pelo menos 100 mil civis
iraquianos, inclusive mulheres e crianças, perderam a vida naquela guerra
que, aos nossos olhos, não passava de um jogo de videogame.

O Grito dos Excluídos das Américas continentaliza o Grito dos Excluídos
iniciado no Brasil em 1995, por iniciativa da CNBB e dos movimentos sociais.
E revela que também no coração do império, como é Nova Iorque, há muitas
pessoas e movimentos desiludidos como esse modelo de sociedade que reduz a
liberdade ao direito de escolha entre várias marcas de cerveja ou modelos de
carros. Elas querem mais. Querem a liberdade de modificar, não silhuetas de
corpos envaidecidos, mas o perfil de uma humanidade que ingressa no Terceiro
Milênio arrastando uma horda de famintos, desempregados e oprimidos.

Em janeiro próximo, esses militantes da esperança já têm encontro marcado no
Fórum Mundial Social, em Porto Alegre.