ANÁLISE SIMPLISTA DO TURISMO SEXUAL DEVE SER REVISTA

2006-03-08 00:00:00

A análise do turismo sexual na maioria vezes é feita a partir da dicotomia entre vítima (a mulher) e vitimizador (o turista estrangeiro), ficando a mulher numa posição subalterna, sem nenhum controle sobre sua própria vida e destino. Porém, o estudo "Nossa Senhora da Help: sexo, turismo e deslocamento transnacional em Copacabana”, presente na última edição semestral da revista Cadernos Pagu, coloca em xeque essa dicotomia, que tem gerado políticas públicas no combate do turismo sexual, sinalizando que as garotas de programa de Copacabana agem racionalmente e vêem nessa prática uma chance de ascensão profissional e pessoal. Os pesquisadores procuram mostrar a complexidade de valores e sentimentos existentes no universo da prostituição, destacar a dificuldade em diferenciar o turista "sexual" do turista tido como "normal", e apontar a incapacidade da legislação brasileira de lidar com o tema.
O estudo de Ana Paula da Silva e Thaddeus Blanchette, ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), focalizou a praia de Copacabana, caracterizada pela presença de estrangeiros e prostitutas. Analisando depoimentos de estrangeiros, os pesquisadores notaram uma definição idealizada da cidade por parte dos turistas, na qual ela é vista como um "campo de diversões sexuais", em que as mulheres se apresentam sexualmente disponíveis, bonitas e exóticas. A definição contextualiza a busca de relacionamentos sexuais e afetivos com as brasileiras, também vistas como mulheres totalmente diferentes daqueles de seus países de origem.
Blanchette fala da dificuldade de conseguir números referentes ao turismo sexual já que é impossível contar turistas sexuais sem fazer uma determinação a priori sobre quem é considerado ou não turista sexual. "Quase nenhum turista aceita esse rótulo de "turista sexual. Então deve-se ter muito cuidado com estatísticas referentes ao turismo sexual, principalmente dados que se referem a identificação de quem é ou não esse tipo de turista, a menos que seja demonstrada claramente a metodologia utilizada para informar os dados estatísticos”, alerta o pesquisador.

Ao comparar o comportamento dos turistas tidos como "normais" com o dos turistas sexuais, Blachette concluiu que mesmo os primeiros tinham geralmente um comportamento sexual acentuado. "A visão que os dois grupos têm da mulher brasileira é funcionalmente igual, e tanto turistas 'normais', quanto supostos turistas sexuais esperavam ter uma vida sexualmente ativa no Brasil", relata o pesquisador. A diferença, segundo Blanchette, é que o primeiro grupo tinha uma inserção social na vida carioca e familiaridade com o idioma português, enquanto o segundo grupo estava “perdido na cidade”, sem dispor de interlocutores nativos além do nível do guia turístico paga. "O comportamento do turista sexual no Rio de Janeiro não é uma função de um turismo moralmente distinto do suposto turismo normal, e sim uma função relacionada a uma falta de inserção nas rotas sociais e sexuais, não comerciais
da cidade", diz.
As diferentes definições sobre turismo sexual, como a apresentada pelo campo legal-jurídico ou pelo senso-comum, e até pela Organização Mundial do Trabalho, também foram observadas pelos pesquisadores, que encontraram um traço comum entre elas. De acordo com Blanchette e Silva é comum a crença de que o problema está centrado unicamente no comportamento sexual dos “gringos” em suas interações com as “nativas”. O estudo propõe o fim dessa visão simplista do turismo sexual em que a mulher é vista como personagem distante de qualquer decisão sobre sua própria vida, mostrando como elas são “ativas na construção de seus destinos”. Ao mesmo tempo, procura dar visibilidade e a ampliar a relação entre turismo internacional, migração e prostituição, que muitas vezes se faz desapercebida, mas que detém importância fundamental para se compreender e poder combater o turismo sexual. “Essa visão simplista reduz as mulheres envolvidas a bens que são potencialmente traficados - ressaltam - e não descreve, muitos menos explica, a gama de relacionamentos que nascem no contexto do turismo sexual e que pode resultar no deslocamento internacional dessas mulheres”.
Na análise de Silva e Blanchette as atividades das garotas de programa não podem ser entendidas como resultado de uma "lavagem cerebral colonialista", ou fruto de uma "baixa auto-estima", mas devem ser compreendidas por meio do que representam para as próprias mulheres: uma forma de ascensão social e possibilidade de ir para o exterior. Eles observam que a escolha por clientes estrangeiros não é um simples acaso. “Longe de serem simples vítimas, elas detêm um controle notável sobre as suas ações e representações, lançando mão de vários artifícios para conseguirem a ascensão social através do forjamento de ligações com estrangeiros", explicam os pesquisadores. Essas mulheres vêem no casamento a possibilidade de poder morar na Europa ou nos EUA, lugares que consideram como tendo “mais oportunidades”.
Questionadas sobre a duração do casamento, as garotas que deram depoimentos para a pesquisa mostram-se despreocupadas, pois a união apenas representa uma oportunidade de trabalhar nos países de primeiro mundo. O estudo conclui que as ações dessas mulheres devem ser encaradas “como estratégias racionais e não como manifestações ideológicas de uma falsa consciência”. Os pesquisadores acreditam que dessa forma o turismo sexual será melhor compreendido.
O estudo procura ainda demonstrar a complexidade de valores que orienta as ações da maioria dos chamados turistas sexuais, as sutilezas dos relacionamentos entre eles e as prostitutas que podem ser confundidas ou até vir a ser manifestações afetivas. Confirmando que no contexto da prostituição “o amor e o sexo comercializado são duas faces da mesma moeda”, os pesquisadores remetem a uma crítica ao Código Penal, já que este define “o crime de traficar mulheres como ajudar qualquer mulher que vá exercer a prostituição no exterior a sair do território nacional”. Segundo Silva e Blanchette, o código simplesmente ignora o habitus da prostituição na praia do Rio de Janeiro, já que não engloba a complexidade das relações existentes entre os turistas e as mulheres de programa.
Nesse imenso universo, a prostituta pode transformar-se em namorada ou até em esposa. “A natureza deslizante, complexa e bilateral dos diversos relacionamentos observados na relação entre turismo, sexo e imigração demonstra a necessidade de se abandonar a categoria de turista sexual como algo explicável através de grandes categorizações maniqueístas”. Eles também concluem que é provável que a atual
legislação possa prevenir o tráfico de mulheres, em especial se a questão continuar a ser tratada como simples viagem internacional de prostitutas.
Os pesquisadores ressaltam que suas análises não necessariamente cabem ao Brasil como um todo, mas deixam claro que, pelo menos na cidade do Rio de Janeiro as interações sexuais entre as mulheres de programa brasileiras e os estrangeiros são mais complexas do que se possa imaginar.