Brasil: O controle público da comunicação

2009-05-05 00:00:00

Reproduzido do boletim e-Fórum nº 248, de 24/4/2008, do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação; título original "Conferência precisa definir formas de controle público da comunicação"
 
A 1ª Conferência Nacional de Comunicação precisa definir formas de controle público e de capacitação da sociedade para incidir sobre a comunicação. Além disso, precisa conduzir à reestruturação do mercado e repensar a relação dos meios de comunicação com a cultura, diz o coordenador-geral do FNDC, jornalista Celso Schröder.
Em entrevista ao e-Fórum, o coordenador-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), jornalista Celso Schröder, aborda as concepções da entidade sobre o papel da Conferência na construção de mecanismos de controle público. Destaca ainda a necessidade de inserir nos debate temas sobre a cadeia produtiva do setor, enfrentando incontornáveis questões mercadológicas. A 1ª Confecom ocorrerá entre os dias 1º e 3 de dezembro de 2009.
O jornalista também presidente da Federação de Jornalistas da América Latina e do Caribe (Fepalc), vice-presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). Leciona no curso de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUC-RS) há mais de 20 anos. Foi presidente do Sindicato dos Jornalistas do RS duas vezes e secretário da comunicação do Partido dos Trabalhadores no estado. Atualmente chefia a Superintendência de Comunicação da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, cargo assumido no mês de janeiro.
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Qual o cenário da mídia brasileira que aguarda a Conferência?
Celso Schröder – O Brasil possui um déficit alto de democracia no setor de comunicação. O atual sistema é verticalizado e concentrado de uma maneira insuportável, fruto de algumas questões históricas e de muitas decisões políticas. Não houve, no Brasil, os debates ocorridos em boa parte do mundo, sobre as escolhas dos sistemas e a atribuição da dimensão pública dos mesmos. Embora a atual Constituição sinalize com algumas questões, como a proibição do monopólio, da concentração de mídia, da censura, e dê garantias à liberdade de expressão, ela o faz de maneira tão pouco regulamentada que praticamente dada disso se aplica.
Nos últimos dez anos, esse sistema entrou em colapso por dois motivos principais. Um deles é a deficiência do modelo de financiamento; o outro é decorrente de uma convergência tecnológica avassaladora. Muito mais do que simplesmente uma transição do tipo televisão preto-e-branco para em cores, como algumas vezes erroneamente é comparada. Estamos num momento histórico novo, que exige de todos nós políticas públicas.
A Conferência se consagra como o lugar propício para essa formulação. Nós conseguimos, a partir da percepção dessa crise, criar essa possibilidade de efetivamente enfrentá-la. Essa crise tem solução e ela será a melhor possível se for discutida e negociada entre todos os agentes políticos em jogo. Se fizermos um bom debate, profundo e responsável, transcendendo as denúncias e os diagnósticos, já exaustivamente feitos, e passarmos para a difícil fase de propor, nós daremos um passo importante na história. Atualizando o país do ponto de vista da democracia, da infra-estrutura e da indústria.
Que formato o evento deve ter para garantir a participação plural?
C.S. –Quando o FNDC apresentou a proposta de realização de uma conferência, manifestamos o cuidado para que ela não se reduzisse a um debate exclusivo dos movimentos sociais. Precisávamos constituir bases de acordo. Isso para que, além do debate oportuno e atrasado que a Conferência vai proporcionar, tivéssemos políticas públicas como decorrência concreta.
Portanto, ela deveria ser, necessariamente, o debate entre os interesses políticos do país, representados, de um lado, pelos empresários de comunicação (vendo-a apenas como o seu negócio), e de outro, pela sociedade civil (precisando atribuir a esse negócio o caráter de serviço e de direito social à comunicação). Além disso, é preciso que o Estado esteja presente, para que as políticas sugeridas possam ser implementadas.
A Comissão Organizadora estabelecida pelo Governo de um modo geral atende ao que o FNDC vinha defendendo. Uma composição tripartite, com a participação do Estado, dos empresários e dos movimentos sociais. Talvez haja uma super-representação do Estado, mas isso não deslegitima o grupo. A Conferência está desenhada nos moldes que o movimento social vinha reivindicando – um encontro nacional, convocado pelo Executivo, com âmbitos regionais e estaduais. Precisamos agora debater com esses agentes econômicos e com o Estado, lutando para conferir à comunicação a dimensão humana e pública.
Qual é o maior desafio a vencer para consolidar a Conferência?
C.S. –O maior desafio nós já vencemos, criando a confiança entre todos os atores de que estávamos propondo a construção de um espaço efetivamente público. Essas negociações ocorreram nos últimos dois anos, e creio que o FNDC teve um papel importante como interlocutor nesse processo. Temos um histórico de relações transparentes, baseadas no cumprimento de acordos e principalmente na transparência de posições. Sem abrir mão dos nossos princípios, sempre nos dispomos a construir propostas a partir de visões antagônicas. Sempre evitamos práticas que levassem á exclussão dos interlocutores dos processos em debate.
Agora entramos num segundo momento. Precisamos compreender que esse espaço deve transformar-se num local de constituição de contratos. Os movimentos sociais devem pactuar sistematicamente, mas com o cuidado de que de nenhuma posição seja submissa ou se sobreponha a outras. Devemos agora pensar na constituição de mecanismos de aferição, de consulta. E já começamos a fazer isso satisfatoriamente com as comissões estaduais.
Precisamos constituir uma Conferência que discuta coisas pontuais, com eixos bem definidos. Com o cuidado de não atribuir a ela um caráter messiânico. Temos que compreendê-la como o início de um processo a ser sedimentado, a exemplo de outras conferências. E precisamos construir bases de acordos na Comissão Organizadora, evitando a tentação de fazer dentro dela a própria Conferência, antecipando um debate que deve ser público.
Outro desafio, ao propor regras para a comunicação, é o de não as confundir com qualquer tipo de censura. Essa Conferência deve ter o caráter de construção de mecanismos de controle público. E esses mecanismos são sistemas interligados, onde se constituem sutis estruturas sem tutores, ou censores, de modo que a liberdade de expressão efetivamente exista.
E qual será o desafio posterior?
C.S. –Acredito que seja o desafio de o Governo, a partir do recolhimento das proposições originárias da Conferência, ter ânimo para transformá-las em políticas públicas. O governo precisa recompor a sua correlação de forças. Ao longo das últimas décadas, o Executivo nacional tem sido refém das empresas de radiodifusão. Espero que este Governo não permita a continuidade dessa situação, nem simplsmente troque de "tutor", passando a submter-se aos interesses das operadoras telefônicas, as chamadas teles, que dominam a internet e já se atribuem o direito de transmitir conteúdos, programas, embora nenhuma norma lhes autorize tanto. Nesse caso a situação pioraria, pois no caso da radiodifusão há algumas normas de controle nas quais a sociedade pode se apegar. No caso das teles, se elas assumissem o papel que hoje cabe às empresas de rádio e TV, o descontrole seria absoluto.
Ao convocar uma Conferência, o Governo precisa constituir articulações e bases de apoio na sociedade para fazer as mudanças necessárias, criando regras para desconstituir esses poderes ilegítimos que aí estão. Devemos atribuir à comunicação brasileira o seu caráter de serviço, por um lado, e de outro, de direito social inalienável, reafirmando o caráter republicano do país.
Quais os grandes temas que devem ser abordados?
C.S. –O tema central deve ser a convergência. Temos que tratar desse imbróglio tecnológico e a consequente confusão de papéis das telecomunicações e radiodifusão. Essa questão é fundamental. Mas outros temas merecem atenção. Temos um índice baixíssimo de leitura no país, por exemplo, e precisamos de ações efetivas para dar conta disso. Temos uma degradação do rádio, que tem somente 4% dos financiamentos no país. Isto obviamente resultou numa deterioração de conteúdo, e obrigou as emissoras a entrarem em rede, traindo sua vocação regional.
Devemos discutir o provimento da comunicação; o significado de rede pública e única, proposta do FNDC feita há muito tempo e que se mostra mais urgente; a reestruturação dos sistemas de comunicação; a forma como a sociedade está capacitada para receber as mensagens midiáticas. A regulação da internet é outro tema. Tudo isso são eixos fundamentais a serem tratados. Além disso, a Conferência deve estar calçada em alguns princípios, como a inclusão social, a regionalização, a diversidade cultural e religiosa, as questões étnico-raciais e de gênero, os cuidados com a infância. Esses princípios devem permear transversalmente a Conferência.
Por que o FNDC dá ênfase aos debates sobre a cadeia produtiva?
C.S. –É preciso compreender que o modelo de comunicação do país é resultado de uma cadeia de valores, de um negócio. Não temos como reverter essa situação se não entrarmos no cerne do debate. É preciso ter coragem para enfrentar esse modelo, prioritariamente econômico, como a esquerda sempre defendeu. Marx [Karl] já apontava que as relações humanas estavam pautadas a partir da vida econômica, não das ideias como queriam os filósofos alemães. Se ficarmos restritos ao idealismo, perderemos esse embate. Fazer a discussão pela lógica da cadeia produtiva não significa excluir os princípios que já falamos, mas incluí-los nesse debate.
Será o espaço para tratarmos da reorganização desse sistema falido da produção a partir da lógica do mercado. Precisamos debater as questões de provimento, produção, circulação, recepção. Como se dará o financiamento da TV pública, das TVs comunitárias? Como se dará a relação das teles com os radiodifusores, hoje frágeis economicamente? Como se dará a produção regional, como ela será regrada?
A distribuição e circulação de produtos de cultura, principalmente pela televisão, estão absolutamente verticalizados. São baseados em um modelo de sucesso comercial que é o de emissoras filiadas, onde a produção se torna concentrada e inibe a cultura regional. Precisamos reverter isto. E a desverticalização também precisa ser pensada para a mídia impressa. O maior jornal brasileiro tem uma tiragem inferior a 300 mil exemplares diários. Isso é vergonhoso, considerando o volume da população brasileira.
Ainda há as questões como recepção e consumo. Precisamos de um sistema que atribua ao receptor uma dimensão cidadã, para que a comunicação não seja encarada simplesmente como entretenimento. Mesmo na televisão paga, o consumidor tem o direito de ter um pacote qualificado.
A base que sustenta a sociedade do futuro é a comunicação. Se conseguirmos dominá-la, ter sobre ela um controle social, o Brasil terá grandes chances de fomentar a igualdade e a pluralidade, consolidar a Nação e a projetar-se mundialmente.
Quais são as bases de políticas de comunicação que incidam no cotidiano?
C.S. –O FNDC tem como base quatro eixos estratégicos: o controle público dos meios, a reestruturação do sistema de comunicação, a capacitação da sociedade e as políticas de desenvolvimento da cultura.
A idéia de controle público propostas pelo FNDC sustenta que o Estado, embora tenha uma dimensão pública definida, precisa ser transpassado por mecanismos diretos de controle da sociedade. A comunicação precisa ser compartilhada e apropriada pela população. Para isso, essa população precisa ser capacitada a compreender os mecanismos de produção dos meios.
Para o FNDC, a partir desses dois princípios, será possível fazer a reestruturação do sistema de comunicação. Isso quer dizer reorganização – precisamos dos sistemas privado, estatal e público garantindo a multiplicidade do país. E todos eles sob controle público.
Quando lutamos por uma comunicação mais democrática, lutamos para atingir a democratização da cultura. Entendemos que a cultura é o resultado final dos meios da comunicação. Portanto, as bases que estruturam o FNDC têm o controle público como vértice e a cultura como síntese.
Como avaliar a efetividade de uma comunicação democratizada?
C.S. –Se existisse um índice de democratização, esse índice se daria pela capacidade da comunicação de representar a diversidade do país. Esse é o nosso principio norteador. Exemplo: a minha fala deve estar assegurada da mesma forma que a dos meus adversários.
Quando lutamos pela democratização da comunicação, não lutamos por uma hegemonia. Dominique Wolton [sociólogo francês] ressalta a importância da coexistência de mídias privadas e públicas nacionais expressando a unidade e a cultura do país, ao mesmo tempo em que as mídias regionais devem ser estimuladas. É preciso haver pluralidade para termos democracia.
Devemos rechaçar qualquer tentativa de se formar uma "Rede Globo" de sinal inverso. Isto é: não queremos criar um sistema de comunicação no qual a "nossa" comunicação predomine. Ela deve ser uma construção coletiva - daí a importância da capacitação da soc